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Na Quimera da felicidade
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.....“Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias -, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura – nada menos que a quimera da felicidade -, ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a tingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão”.
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(trecho do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis)
de Machado de Assis)
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*[Ganhei este livro de um grande mestre,
o Sr. Thomaz Souto Correa.
Ele defende que é impossível escrever bem
sem conhecer o que foi feito de melhor
com a língua portuguesa.
Tal foi o meu apaixonamento pelos textos
de Machado de Assis, que reli este trecho inúmeras vezes,
fascinada com a genialidade na construção da cena e,
é claro, com o estilo saboroso do autor.
Eu quis compartilhar.]
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(Imagem All I need, de Poet of Life, em seu álbum no Flickr)
2 comentários:
Como eu gostaria de ter esse gosto "MAchadiano"...gostar, compreender Machado de Assis é quase um dom.
Não consegui passar da segunda página de "Memórias Póstumas", como diz a professora Carolina, minha orientadora do tcc, sou muito prática, rápida e objetiva o que me impede de ver os detalhes dentro de um texto lindo como este.
Abraços
Para quem lê Machado, escrever parece muito fácil. Pelo menos eu me sinto assim.
A sensação é igual quando nos deparamos com um equilibrista perfeito. Aquele rodopiar de bolinhas, de facões, de varetas em chamas (seja lá o que for), ao ser feito com tanta maestria, é capaz de nos animar a arriscar também.
Até alguns anos atrás, lembro que eu treinava com larajas a impossível arte do malabarismo toda vez que avistava nos faróis aqueles artistas de rua.
Perdi tempo e laranjas.Escrever e equilibrar são façanhas árduas, complexas, "barras pesadas" (como dizem por aí).
Ver o mestre Machado escrever é tão gostoso, mas tão gostoso, que a gente (pelo menos eu me sinto assim) passa a ter a esperança cega de poder fazer essas gostosuras com a palavra também.
Que engano! Vou é tomar um suco de laranja e afogar as mágoas...
Parabéns pelo blog ineFFável. Os bons textos daqui sempre me atraem, cedo ou tarde.
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