18.10.09

Estive Pensando...

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Na Quimera da felicidade
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.....“Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim – flagelos e delícias -, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura – nada menos que a quimera da felicidade -, ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a tingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão”.
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(trecho do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis)
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*[Ganhei este livro de um grande mestre,
o Sr. Thomaz Souto Correa.
Ele defende que é impossível escrever bem
sem conhecer o que foi feito de melhor
com a língua portuguesa.
Tal foi o meu apaixonamento pelos textos
de Machado de Assis, que reli este trecho inúmeras vezes,
fascinada com a genialidade na construção da cena e,
é claro, com o estilo saboroso do autor.
Eu quis compartilhar.]


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(Imagem All I need, de Poet of Life, em seu álbum no Flickr)

2 comentários:

Unknown disse...

Como eu gostaria de ter esse gosto "MAchadiano"...gostar, compreender Machado de Assis é quase um dom.
Não consegui passar da segunda página de "Memórias Póstumas", como diz a professora Carolina, minha orientadora do tcc, sou muito prática, rápida e objetiva o que me impede de ver os detalhes dentro de um texto lindo como este.
Abraços

Fábio Pereira disse...

Para quem lê Machado, escrever parece muito fácil. Pelo menos eu me sinto assim.

A sensação é igual quando nos deparamos com um equilibrista perfeito. Aquele rodopiar de bolinhas, de facões, de varetas em chamas (seja lá o que for), ao ser feito com tanta maestria, é capaz de nos animar a arriscar também.

Até alguns anos atrás, lembro que eu treinava com larajas a impossível arte do malabarismo toda vez que avistava nos faróis aqueles artistas de rua.

Perdi tempo e laranjas.Escrever e equilibrar são façanhas árduas, complexas, "barras pesadas" (como dizem por aí).

Ver o mestre Machado escrever é tão gostoso, mas tão gostoso, que a gente (pelo menos eu me sinto assim) passa a ter a esperança cega de poder fazer essas gostosuras com a palavra também.

Que engano! Vou é tomar um suco de laranja e afogar as mágoas...

Parabéns pelo blog ineFFável. Os bons textos daqui sempre me atraem, cedo ou tarde.